Análise: O descalabro da gestão dos resíduos elétricos
Em 2019 as três entidades gestoras dos Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos (REEE) recolheram e trataram cerca de 32 mil toneladas destes resíduos, valor que corresponde a 20% da média do total destes equipamentos colocados no mercado nos 3 anos anteriores. Ou seja: ficaram bem longe da meta das suas licenças, que era de 65%.
Mas se esse número já era muito desanimador, pior ficou a situação em 2020, quando se soube que essas mesmas entidades gestoras atingiram um valor de apenas 15%, ou seja, só recolheram e trataram 1 em cada 4 dos REEE que tinham obrigação de gerir, num falhanço enorme e difícil de compreender quando tanto se fala no ambiente, nas alterações climáticas, na economia circular ou mesmo no Green Deal da União Europeia.
O problema é que esta gestão negligente dos REEE tem implicações muito graves em termos do ambiente e da saúde pública, dada a perigosidade de parte dos seus materiais.
Esses perigos são vários, sendo que um dos mais relevantes é o dos fluídos de refrigeração existentes nos frigoríficos ou equipamentos de ar condicionado. Se os resíduos forem mal geridos, essas substâncias acabam por ser libertadas para a atmosfera – contribuindo para o aumento da temperatura do planeta, uma vez que o seu efeito de estufa é muito superior ao do dióxido de carbono.
Mas os REEE também têm muitos outros componentes perigosos para a saúde, tal como os plásticos com retardadores de chama bromados (um POP – poluente orgânico persistente), o mercúrio das lâmpadas, vários metais pesados ou mesmo os PCBs.
E por que razão estamos a tratar tão mal os nossos REEE?
A resposta é fácil: porque a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e a Direcção-Geral das Atividades Económicas (DGAE), assim como as respetivas tutelas (Ministérios do Ambiente e da Economia), que deviam regular o funcionamento das entidades gestoras destes resíduos, na prática se demitiram dessa função.
1 – O subfinanciamento do Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos
É importante aqui lembrar que o fluxo dos REEE está inserido num sistema de responsabilidade alargada do produtor. Neste sistema, quem coloca um produto no mercado é responsável pelo financiamento da recolha e tratamento do mesmo em final de vida, transferindo fundos para as entidades gestoras (Electrão, ERP e E-Cycle) que cumprem essa função.
E o primeiro problema surge logo, porque a APA e a DGAE, com o fechar dos olhos das respetivas tutelas, permitem que as empresas que colocam equipamentos elétricos e eletrónicos (EEE) no mercado paguem muito pouco para as entidades gestoras de REEE e, assim, não haja verba suficiente para financiar todo um programa de recolha e tratamento de resíduos que permita a essas entidades gestoras atingirem as metas das suas licenças.
O sistema está, pois, a “funcionar” com um déficit de 75% no seu financiamento, ficando as grandes multinacionais dos equipamentos elétricos a rir e a nossa saúde ou o ambiente a chorar.
2 – Distribuição não cumpre a sua obrigação de recolher o equipamento velho quando vende um novo
Mas há um outro grande responsável pela baixa taxa de recolha destes resíduos, que é o setor da distribuição/comercialização dos produtos elétricos.
Com efeito, de acordo com a legislação, os comerciantes estão obrigados a recolher um REEE na venda de um equipamento equivalente. Ora essa obrigação está longe de ser cumprida, uma vez que, no caso dos frigoríficos, por exemplo, a distribuição recolhe menos de metade dos frigoríficos velhos face aos novos vendidos e ninguém seguramente acredita que mais de 50% dos portugueses querem ficar com o frigorífico velho ao lado do novo na sua cozinha.
O que se passa, na generalidade, é que muitos comerciantes contratam empresas transportadoras para entregarem os frigoríficos. Estas recolhem os frigoríficos velhos mas, em vez de os devolverem ao comerciante para que este os entregue a uma entidade gestora de REEE, como é sua obrigação, acabam por vendê-los a empresas de sucata que ilegalmente os recebem, aproveitam os metais que lhes interessam e depois largam a carcaça no meio ambiente. E com isto lá vão para a atmosfera os gases que provocam o efeito de estufa.
O que é surpreendente é que, apesar desta prática ser recorrente há vários anos e estar generalizada no país, ainda nenhuma autoridade ambiental tenha confrontado o setor da distribuição com estas permanentes ilegalidades.
Por outro lado, as entidades gestoras dos REEE, que pagam muito dinheiro à distribuição pelos REEE recolhidos (ou seja, apenas para esta cumprir uma sua obrigação legal), também nada têm feito para corrigir esta situação. E depois vêm queixar-se publicamente sobre a existência de um canal paralelo que desvia os REEE, quando é a distribuição que fomenta a existência desse mesmo canal.
3 – A taxa de gestão de resíduos paga pelas entidades gestoras dos REEE pelo incumprimento das suas metas é irrelevante
Em Portugal existe a figura da Taxa de Gestão de Resíduos (TGR) que é aplicada pelo Estado a várias operações de gestão de resíduos que não se insiram numa lógica da economia circular, como sejam a incineração e o aterro.
A TGR também é aplicada às entidades gestoras de fluxos de resíduos pelo incumprimento das metas das suas licenças, sendo de cerca de € 6,6 por tonelada de incumprimento. O problema é que esse valor é muito baixo e as entidades gestoras preferem pagá-lo a suportarem os custos inerentes ao cumprimento integral das suas obrigações. Assim, o crime compensa e, enquanto esta situação se mantiver, a recolha e o tratamento dos REEE em Portugal não vão passar dos números atuais que envergonham o país.
Na recente alteração da legislação sobre resíduos (o RGGR – Regime Geral de Gestão de Resíduos) a ZERO propôs que a TGR para o incumprimento por parte das entidades gestoras subisse para um valor que efetivamente fosse dissuasor das más práticas. Infelizmente, apesar de muitos partidos terem apoiado esta proposta da associação, a mesma acabou por ser chumbada tangencialmente no Parlamento (vá-se lá saber porquê). Pelo que só temos agora de esperar que com o novo Parlamento haja uma maior sensibilidade por parte dos nossos eleitos para este grave problema ambiental.
4 – Poucos resíduos recolhidos e muitos deles mal tratados
Como se não bastasse o baixíssimo nível da recolha dos REEE em Portugal, enfrentamos ainda um outro problema, que é a qualidade com que os resíduos recolhidos acabam por ser tratados.
Sobre isso, temos logo à partida um problema de grave falta de transparência por parte da APA, que se tem recusado a apresentar publicamente os dados sobre a forma como os REEE estão a ser tratados, nomeadamente sobre as quantidades das frações perigosas que estão a ser removidas desses resíduos.
No ano de 2018 a APA indicou que foram recolhidas e tratadas cerca de 70 mil toneladas de REEE, mas pelo menos 18 mil toneladas desses resíduos foram contabilizadas a partir de REEE misturados com outra sucata metálica.
O sistema era simples: as entidades gestoras deslocavam-se às empresas que recebem sucata metálica para triturar (os fragmentadores), verificavam a percentagem de REEE que aparecia nesses carregamentos de sucata misturada e indicavam à APA essas quantidades como tendo sido efetivamente descontaminadas e tratadas.
O problema é que esses fragmentadores não procediam a qualquer tratamento desses REEE – o que é natural, tendo em conta em que estão misturados com outra sucata – limitando-se a proceder à sua trituração para aproveitamento dos metais.
Ora, apesar deste procedimento técnico ser tudo menos uma operação de remoção de frações perigosas e desmantelamento de um REEE como a lei obriga, mesmo assim a APA achou por bem contabilizar essas 18 mil toneladas para a meta do tratamento adequado dos REEE.
Fica agora a questão de saber como é que a APA e o Ministério do Ambiente vão descalçar a bota, uma vez que já foram questionados pela ZERO sobre a quantidade de materiais perigosos que foram removidos dos REEE através da operação acima descrita. Como é óbvio, a APA ainda não deu uma resposta, porque se a der vai ficar evidente a fraude que constituiu este processo. No entanto, a situação agravou-se ainda mais, porque a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos já instou a APA a fornecer essa informação à ZERO.
Em relação a 2019, também foi pedido à APA que fornecesse os dados sobre a remoção das frações perigosas relativamente a 20 mil toneladas de REEE sobre as quais existem suspeitas de operações ilegais, mas esta entidade tem sistematicamente recusado libertar essa informação.
Estas situações de suspeitas de ilegalidades no tratamento dos REEE agravam-se quando lemos os relatórios das auditorias supostamente independentes feitas a pedido das entidades gestoras aos operadores de gestão de resíduos (OGR) que contratam para tratar os REEE.
Essas auditorias, em vez de avaliarem a qualidade do trabalho realizado por esses OGR – o balanço mássico do processo, a taxa de reciclagem e principalmente a taxa de remoção de frações perigosas – acabam por recolher apenas informação sobre aspetos burocrático-administrativos, como as dívidas à Segurança Social ou ao Fisco que eventualmente possam pender sobre essas empresas.
Assim, sem dar a devida relevância à forma como os REEE são tratados, as entidades gestoras acabam muitas vezes por escolher os OGR com quem trabalham essencialmente através do preço. E isso, a par da incapacidade da APA de acompanhar estas situações, acaba por originar problemas como o que ocorreu com um OGR em Canas de Senhorim, que ganhou concursos das entidades gestoras para tratar REEE perigosos sem ter condições para o fazer, tendo criado um grave passivo ambiental de substâncias tóxicas que teve posteriormente de ser removido.
Com esta falta de controlo dos processos de tratamento dos REEE, corremos claramente o risco desta situação se estar a repetir, ou em empresas nacionais que têm ganho este concurso essencialmente pelo fator preço, ou mesmo fora do país. Porque agora as entidades gestoras, com o aval dos Ministérios do Ambiente e da Economia (!) começaram a enviar para empresas espanholas parte dos REEE que recolhem.
Isto quando se sabe que há empresas portuguesas que trabalham há vários anos na reciclagem de REEE, sendo algumas delas referência a nível internacional, e que agora correm o risco de fechar as portas por falta de matéria para trabalhar. Nada mau, como medida para inserir no Programa de Recuperação e Resiliência na área da indústria portuguesa de reciclagem!
Para terminar, diria que os REEE são a ponta do iceberg do caos em que nos últimos anos entrou a gestão dos resíduos no nosso país, situação que, aliás, está bem patente no claro falhanço de Portugal no cumprimento das metas de reciclagem dos resíduos urbanos para 2020.